Correio de Notícias
Curitiba, 15 de agosto de 1986.
O MESTRE
A primeira vez que eu o vi (1964?), acho, ele trabalhava em um restaurante italiano da moda, a Fontana Di Trevi, na então rua XV, a 100 passos à direita de quem vem da Praça Osório, ao lado do então Cine Palácio, hoje, uma loja qualquer.
Era um tipo atarracado, muito loiro para um italiano, e diziam que era uma fera em artes marciais japonesas, uma pessoa pra se tomar cuidado na hora de perder a paciência.
Foi nessa época que as artes marciais do Oriente começaram a entrar na moda em Curitiba e, conseqüentemente, no mundo.
Artes marciais, aqui, quer dizer judô, a primeira a se afirmar, seguida pelo florescimento dos vários estilos de karatê, aikidô, depois, tae-kwon-dô, tai-chi, hapki-dô, e todas essas maneiras elegantes de quebrar a cara do próximo que o Extremo Oriente desenvolveu.
Na época, a gente não distinguia direito as coisas. Tudo o que se sabia é que o domínio de uma arte marcial asiática representava uma superioridade na luta dos machos pela supremacia homem a homem.
Pouca gente sabia que, entre a Reitoria e o Teatro Guairá, havia uma academia de Judô, a primeira Kodokan, dirigida pelo “sensei” Kamada, ex-oficial do Exército Imperial japonês, faixa preta quinto grau de judô, faixa preta de kendô, a esgrima japonesa, veterano da Segunda Guerra Mundial, lavrador que cultivou em Curitiba a semente do judô.
Muito menos gente ainda sabia que antes de Kamada, havia mestre Oguino, uma figura, hoje, lendária, entre os vários sobreviventes daqueles tempos primordiais. “Sensei” Oguino dirigia uma espécie de pensão para rapazes de origem japonesa vindos do interior para estudar em Curitiba. Sua pensão era preferida pelos pais dos alunos pela disciplina nipônica que impunha em seu estabelecimento.
Franzino e miúdo, Oguino contrastava com a massa atarracada de músculos de “sensei” Kamada, que trouxe a Kodokan, a “Casa para Ensinar o Caminho”, para Curitiba. Oguino, Kamada: eles foram os primeiros, os patriarcas, os antepassados.
Kamada não se deu muito bem, em termos de sobrevivência, e teve que vender sua espada de samurai para poder pagar a passagem de volta para o Japão.
Em sua breve passagem por Curitiba, porém sensei Kamada formou uma geração de brilhantes judokas que, depois, viraram mestres e continuadores de sua arte, elos na longa cadeia de transmissão do “Caminho da Suavidade”.
Sob a direção de Kamada, por exemplo, foi campeão brasileiro de judô, categoria absoluta, um ex-aluno de Oguino, um pacato gigante curitibano chamado Muller, o “Mireru-San”, há muitos anos afastado das lides agônicas.
A geração de discípulos diretos de Kamada foi o núcleo da Kodokan, a “Casa para Ensinar o Caminho”, suprema entidade do judô mundial, que Kamada trouxe para cá.Makoto Yamanouchi, Kenjiro Hironaka, Aldo Lubes, Sensei Altevir, Sensei Hayashi, Sensei Prestes.
Nessa época, o Paraná foi uma potência brasileira em matéria de judô, somando a força do Norte, onde, em Londrina, despontou o extraordinário Suzuki, o mais fantástico judoka que eu já vi em ação. Foi quando apareceu entre nós o grande Nilson, mestre de golpes de quadril.
Discípulos desta geração, netos de sensei Kamada, alguns dos mais notáveis atletas e, hoje, professores de judô: Portugal, Paulo Mikoski e sobretudo, Ney Mecking, campeão brasileiro, campeão pan-americano, orgulho da academia, senhor total da arte.
Aldo Lubes é parte (mas muito mais que parte) dessa história.
Com ele, com Makoto e com Kenjiro, aprendi a grandeza do Caminho da Suavidade, esse ramo do zen que se pratica com o corpo todo.
Discípulo, aprendi com sensei Aldo, não apenas golpes, mas toda a grandeza humana que se oculta por trás da prática de uma arte marcial.
A serenidade alerta.
A paciência diante da derrota.
A humildade diante da vitória.
A relatividade diante das derrotas e vitórias.
Amigo dele, além de aluno, de horas conversando sobre a arte, vi mestre Aldo mudar, sempre o mesmo, sempre coerente, sempre inteiro.
Vi-o formar-se em Educação Física.
Vi-o apaixonar-se lentamente pelo karatê, do qual hoje é faixa preta e professor, ele que sempre teve, em judô, um estilo brusco e arisco (direto) de lutar, mais afim ao karatê que o sinuoso (mas maravilhoso) judô de Kenjiro Hironaka, ou o judô perfeito, mas meio frio, cerebral e desalmado, de sensei Makoto.
Aldo Lubes será sempre o meu mestre.
Pelo que sabe e pelo que ensina.
Por sua presença forte.
Por sua lucidez diante das coisas da vida e da arte.
Pelo toque sempre preciso.
Pela clareza com que vê.
Pelo zen que tem.
Me orgulho de algumas coisas na vida.
Dentre elas, pela amizade deste homem, mestre, sábio,amigo.
Paulo Leminski.